País supera Reino Unido, que ficava no topo do ranking. Mercado já movimenta R$ 45 bilhões por ano e está na mira do governo, que deseja elevar a arrecadação taxando o setor.
No país do futebol, onde os jogos legais (como as loterias) e ilegais (como o do bicho) são parte do cotidiano, as apostas esportivas ao alcance de um clique caíram no gosto do brasileiro nos últimos anos. Une duas paixões nacionais: a fezinha e a bola. Para muita gente, as bets viraram uma forma mais emocionante de acompanhar os campeonatos, interagir com amigos e ainda faturar um extra. Mas só agora Brasília olha para essa febre.
A pedido do governo, o Congresso está perto de aprovar um projeto que taxa plataformas e apostadores, além de criar regras para tornar a atividade mais segura, a exemplo de outros países. Há quem só se divirta, mas também há muitos que perdem o controle e acumulam perdas.
Há poucos números sobre os usuários no Brasil, mas, segundo levantamento da empresa de análise de dados Similarweb (que tem atuado como defensora do setor junto ao governo e ao Congresso), em 2022, o Brasil superou o Reino Unido (considerado o mercado mais consolidado) em acessos a essas plataformas, que se multiplicam e investem cada vez mais em publicidade no esporte. Entre janeiro e dezembro do ano passado, a alta foi de 75%.
Brecha aberta em 2018
O estudo “Futuro das Apostas Esportivas On-line”, da plataforma Futuros Possíveis, indicou que, no fim do ano passado, um em cada três adultos que acompanham e praticam esportes no país já tinham feito algum tipo de aposta on-line. Um em cada quatro apostava regularmente. No caso dos entrevistados entre 16 e 29 anos, o percentual que já experimentou chega a 44%.
O autônomo Deilon Leal, de 25 anos, é um desses jovens. Começou por lazer, seguindo amigos e influenciadores que ostentavam ganhos nas redes. Hoje, gasta cerca de R$ 100 por semana e passa de três a quatro horas por dia monitorando plataformas:
— Tudo o que eu ganho eu saco, para ter um certo controle sobre o saldo. Se o dinheiro ficar lá, vou torrar em apostas.
As bets esportivas foram respaldadas por uma brecha aberta em 2018 na legislação restritiva do jogo no Brasil: foram descriminalizadas as chamadas “apostas de cota fixa”, quando é antecipado ao jogador quanto ele ganha se acertar resultados.
O mercado associado ao esporte explodiu no país, movimentando pelo menos R$ 45 bilhões por ano, e despertando o interesse do Ministério da Fazenda em taxar a atividade para ajudar no equilíbrio das contas públicas.
Um projeto de lei foi aprovado recentemente na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, depois de passar pela Câmara, e aguarda votação no plenário. Os parlamentares levaram a taxação para algo mais próximo da australiana, e propõem regras de combate ao jogo compulsivo similares às diretrizes britânicas.
Para o psiquiatra Gustavo Teixeira, é preciso criar mecanismos contra a compulsão. Ele explica que o sistema de recompensa cerebral é ativado durante a aposta, que desencadeia uma descarga de dopamina, reforçando a vontade de apostar mais e mais.
A especialista em psicologia comportamental Claudia Melo alerta que muita gente pode não se controlar. A ideia de que é possível ganhar dinheiro facilmente aumenta a atração, mas, para ela, só a sensação de maior envolvimento do torcedor com o jogo já explica o sucesso das bets.
Sem desgrudar do celular, Gustavo Brito, de 18 anos, acompanhou a última rodada do Brasileirão, na quarta, com o amigo Erik Silva, de 19, num bar da Zona Norte do Rio, de olho em seus palpites. Torcedor do Fluminense, ele diz que as apostas on-line aumentaram o seu interesse pelas partidas de outros times:
— Ver o dinheiro e a possibilidade de ganhar traz uma adrenalina boa. Tem jogos sem graça nenhuma, mas você consegue curtir se apostar.
Prejuízo de R$ 120 mil
O engenheiro Guilherme de Faria, de 24 anos, diz considerar a bet uma fonte de renda extra. Ele acessa as plataformas on-line sempre que tem tempo livre e aposta cerca de R$ 100 diariamente, mas admite que nem sempre é bem-sucedido:
— Em quatro anos, meu saldo é negativo em R$ 2.500. Acho difícil parar porque é como fumar. A pessoa para quando quiser, mas não quer. Já apostei até em críquete, mesmo não fazendo a menor ideia de como funciona o esporte.
O agricultor Marcos (o nome é fictício, pois ele pediu para não ser identificado), de 35 anos, deixou de comprar roupas e presentes para o filho. O transtorno do jogo compulsivo drenou suas economias e destruiu seu casamento. Ele calcula ter perdido mais de R$ 70 mil:
— Não fiquei sem comer porque pegava dinheiro emprestado. Já gastei o dinheiro do aluguel, da luz. Se eu tivesse desempregado, com certeza passaria fome (para apostar).
Também sob anonimato, o almoxarife José (nome fictício), de 26 anos, conta que perdeu o emprego e teve de vender um carro para cobrir o rombo financeiro das apostas na internet, o que destruiu seu relacionamento com a mãe. Estima a perda de aproximadamente R$ 120 mil:
— Uma vez sonhei com o placar de um jogo do Palmeiras, apostei R$ 1.600 e tive um retorno de R$ 111 mil. No outro dia, fiquei desorientado, não sabia o que fazer, era muito dinheiro. Nem sabia se a casa de apostas iria me dar. Então, fiz mais uma nova aposta. Apostei os R$ 111 mil para sair um gol em uma partida e não saiu nenhum gol. Perdi tudo.
Para reduzir o uso abusivo das plataformas de apostas, a regulamentação brasileira em tramitação no Senado estabelece que as empresas de apostas devem ter medidas para prevenir o transtorno do jogo compulsivo e o endividamento, seguindo precedentes internacionais. Mas não é muito detalhada, criticam especialistas.
Uma portaria normativa da Fazenda em vigor atualmente diz que as empresas devem ter mecanismos de controle, como limite de tempo dedicado a apostas e de perdas, intervalo para pausa e autoexclusão quando o apostador reconhece um comportamento vicioso.
Mas, na prática, deixa as plataformas estabelecerem os próprios limites, como no Reino Unido. Para o advogado Luiz Loques, isso transfere o risco de compulsão ao usuário.
— Apesar das semelhanças, o sistema britânico é mais rigoroso. O projeto de lei brasileiro deixa muita coisa em aberto para a portaria da Fazenda. No Reino Unido, o Gambling Act (lei do Parlamento que disciplina as apostas) definiu algumas condutas como crime. Nossa regulamentação só dispõe sobre penalidades administrativas, com advertência e multa para pessoas jurídicas — diz Loques.
No quesito taxação, o Reino Unido cobra 21% sobre os ganhos das operadoras de apostas. No Brasil, a proposta inicial da Fazenda era tributar os resultados das plataformas em 18% e os prêmios (acima de R$ 2.112) de apostadores em 30%.
Os parlamentares reduziram as alíquotas para 12% e 15%, respectivamente, depois da pressão de entidades ligadas às empresas. O governo buscava uma taxa sobre o faturamento equivalente à sueca, mas os senadores preferiram algo próximo à taxa da Austrália, que vai a 15% para plataformas em 2024.
Tributação pode inibir
O professor de Direito da FGV Gustavo Fossatti aponta a Alemanha como um dos poucos países que impuseram limites no valor das apostas e nas perdas por usuário. Além disso, as empresas pagam 5,3% sobre o faturamento, sem contar impostos estaduais, que variam de 20% a 80% da receita.
— Países como a Alemanha, com arrecadação robusta, não dependem tanto desse mercado e podem tributar de forma agressiva. O Brasil depende da arrecadação, então, a tributação não pode ser tão elevada a ponto de inibir o crescimento do setor — diz Fossatti.
Alguns países mantêm taxação mais baixa, como Malta e Grécia, de 5%. Nos Estados Unidos, empresas regularizadas pagam 0,25% do montante apostado. E há 24% de Imposto de Renda sobre prêmios maiores de US$ 5 mil.
Erlan Valverde, sócio da área de Direito Tributário de TozziniFreire Advogados, diz que a licença para operar nesse mercado também varia. Em Nova Jersey, nos EUA, por exemplo, operadoras têm de pagar US$ 100 mil (R$ 492 mil), com adicional a cada renovação. Na Espanha, o custo pode chegar a € 50 mil (R$ 265 mil).
— São valores muito inferiores aos R$ 30 milhões propostos no Brasil (para licença de operação, conforme previsto no projeto de lei). Considerando o valor de entrada e a tributação elevada, a proposta do governo pode desestimular empresas a entrarem no mercado legal, reduzindo a receita tributária a ser obtida.
Matéria: O Globo